terça-feira, 24 de junho de 2014

As cidades na ponta do lápis

Por Diego Viana | De São Paulo

Ao fim do processo eleitoral que renova as prefeituras e câmaras dos 5.565 municípios brasileiros, os problemas urbanos que inspiraram os debates entre os candidatos nas principais capitais adquirem uma dimensão nova. Os prefeitos, novos ou reeleitos, terão de fazer face à "era das cidades" na economia mundial. Ou seja, cada problema, deficiência ou gargalo de uma cidade deixa de ser um problema só dela para tornar-se um empecilho à economia de todo um país. Engarrafamentos, poluição, o isolamento dos subúrbios, a falta de áreas verdes, afetam não somente a vida do eleitor (e cidadão), mas também a capacidade da economia para continuar crescendo.
O papel amplificado do universo urbano está expresso na recém-lançada edição do relatório bienal "State of the World's Cities" (Estado das cidades do mundo), publicado pela agência Habitat, da Organização das Nações Unidas (ONU).
Quando emergir da longa crise financeira que começou em 2007, o mundo vai descobrir que o motor de sua prosperidade, daí por diante, será "o dinamismo e a intensa vitalidade das cidades", afirma o geógrafo Eduardo Lopez Moreno, diretor da divisão de monitoramento e pesquisa da agência.
A "era das cidades", como diz Moreno, não resulta apenas do fato de que, desde 2010, mais de metade da população mundial vive em áreas urbanas, proporção, que, calcula-se, deve chegar a 70% até 2050. O fator preponderante é que "são as grandes cidades, e não os países, que passam a comandar a criação de riqueza". Na introdução do relatório, lê-se que, "no futuro que vai tomando forma, as áreas urbanas ao redor do mundo serão não só a forma dominante de habitat da humanidade, mas também o motor do desenvolvimento humano como um todo".
Estudos disponíveis apresentam os centros urbanos brasileiros como muito mal situados para entrar nessa "era das cidades". Economistas, urbanistas e geógrafos assinalam que a mobilidade deficiente pode custar até R$ 40 bilhões ao ano (FGV, 2008), a poluição atmosférica custa, só em São Paulo, até R$ 17 bilhões em doenças respiratórias (Unifesp, 2012) e a deficiência da rede de esgotos leva a perdas na massa salarial que podem ser estimadas em cerca de R$ 41,5 bilhões (FGV e Instituto Trata Brasil, 2009).
O impacto generalizado de perdas como essas, para além das fronteiras do município afetado, aparece no estudo sobre enchentes paulistanas realizado pelo Núcleo de Estudos Regionais e Urbanos da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo (Nereus/FEA-USP). Empresas localizadas perto de quarteirões alagados já chegaram a perder negócios avaliados em R$ 30,7 milhões em dias de enchente em um ano. Seus clientes e fornecedores no Estado perderam mais R$ 8,75 milhões. Somando com os fornecedores e clientes do país inteiro, as perdas chegam a quase R$ 50 milhões.

Todos esses cálculos são conservadores, porque não levam em conta efeitos em cascata, incluindo a influência cruzada. Por exemplo, a mobilidade deficiente incentiva a ocupação desordenada do solo, em habitações sem saneamento e infraestrutura, com pouco acesso à educação e assim por diante. São inúmeras as variáveis que influenciam a vida e a economia de uma cidade. No Brasil, os estudos dessas variáveis ainda são esparsos e desconexos. Desde a presença de cientistas que trabalham na cidade até a dispersão dos bairros, passando pela agilidade do transporte público e a proliferação de habitações precárias, os elementos que compõem a mobilidade, a saúde pública e a qualidade de vida do ambiente urbano se afetam mutuamente, a ponto de torná-los difíceis de distinguir.
De acordo com José Augusto Fernandes, diretor de políticas e estratégia da Confederação Nacional da Indústria (CNI), a entidade se alarmou com "a constatação de que as cidades brasileiras estão parando". De um estudo então produzido resultou o relatório "Cidades: Mobilidade, Habitação e Escala", divulgado neste mês, que é apresentado como "um convite para pensar as cidades e colocá-las no centro da agenda".
O relatório se abre com uma afirmação peremptória, que ecoa o aviso da ONU de que a era das cidades já começou: "O bom ambiente urbano é tão determinante para as atividades econômicas, no século XXI, como a proximidade à fonte energética e à matéria-prima o foi para a indústria, no século XIX". Segundo Fernandes, "hoje, é impossível fazer duas ou três reuniões na mesma cidade, no mesmo dia. Isso afeta a produtividade, tanto da direção das empresas quanto dos trabalhadores, que chegam desgastados ao trabalho".
Qualquer elemento que reduza a produtividade de empresas e trabalhadores bate de frente com a exigência de agilidade da economia moderna, em que ganham preeminência a inovação no setor de serviços e a criação de novos modelos de negócios. Fernandes aponta as dificuldades específicas para a indústria: em tempos de produção "just-in-time", em que manter grandes estoques é indesejável, a dificuldade de calcular o tempo que vai levar um determinado deslocamento implica custos suplementares. "As cidades deixaram de pensar o transporte e a moradia como algo integrado ao seu modo de existência. Esse fato demonstra que temos um problema de gestão das regiões metropolitanas", diz Fernandes.
O processo pelo qual as economias se tornaram mais crucialmente urbanas é resumido pelo economista Eduardo Amaral Haddad, do Nereus/FEA-USP. À medida que as indústrias deixavam as regiões urbanas em busca de custos menores (o chamado "hollowing out"), as cidades passaram a concentrar os serviços, as tomadas de decisão, os centros de pesquisa e inovação. Com o desenvolvimento de tecnologias de comunicação, as trocas entre as cidades cresceram muito mais aceleradamente do que o produto das próprias cidades - que se tornaram, segundo o economista, "interdependentes e concorrentes". Apesar da coincidência no sobrenome, o economista não tem parentesco com o candidato petista à prefeitura de São Paulo.
O mundo urbano e globalizado do século XXI exige das grandes cidades, outrora industriais, uma rápida adaptação às novas formas de produção. Citado por Haddad, o economista urbano Charlie Karlsson, da Jönköping Business School, argumenta que não serão muitas as cidades a se integrar à rede das "cidades criativas" globais, aquelas em que atividades de inovação e conhecimento dão a tônica da produtividade econômica. Desde a década de 1990, Karlsson mapeia a presença nas maiores cidades do planeta de indústrias consideradas inovadoras, equipamentos culturais e ocupações pautadas pela criatividade. O resultado é um "ranking" com as 30 cidades mais adiantadas nesse processo.
O bom ambiente urbano é tão determinante no século XXI como a matéria-prima no século XIX para a economia
Neste ano, pela primeira vez uma cidade brasileira apareceu na lista: São Paulo ocupa a 29ª posição, entre a canadense Montreal e a conurbação britânica de Manchester e Liverpool. "A vantagem de São Paulo é que seus 20 milhões de habitantes por si sós já oferecem escala, ainda que a evolução em outros campos seja lenta", diz Haddad. "Vale a pena para indústrias criativas instalar-se em São Paulo, se de 20 milhões pelo menos 2 ou 3 milhões conseguem formar um mercado para elas."
Os demais fatores que tornam uma cidade atraente para as modernas indústrias criativas, porém, enfraquecem a posição de São Paulo, como das demais cidades brasileiras, na competição para se tornarem pontas-de-lança econômicas do século XXI. Aglomerações urbanas produzem ganhos de escala, tanto para as empresas quanto para os residentes, que encontram bens e serviços mais disponíveis e têm mais acesso a interações e empregos. Segundo Haddad, estima-se que a eficiência econômica de uma cidade é incrementada em 15% quando ela dobra de tamanho.
Por outro lado, as metrópoles também criam novos custos, específicos da realidade urbana, e que são bem conhecidos, começando com os engarrafamentos e a poluição. "O ideal é que a produtividade cresça mais rápido que os custos, mas no Brasil os custos já crescem mais do que a produtividade", diz Haddad. Embora os números desse descompasso entre custos e ganhos sejam difíceis de precisar, a percepção de que as cidades brasileiras estão ineficientes é generalizada e motivou a produção do relatório da CNI sobre mobilidade e habitação. O maior dos vilões, segundo as pesquisas de economistas urbanos, é a mobilidade.
"Se conhecemos os meios de deslocamento dos trabalhadores, os locais de moradia e trabalho, os salários e algumas outras variáveis, podemos fazer todo tipo de simulação", diz o economista. "Por exemplo, o que acontece se retirarmos o metrô de repente? Fizemos os cálculos e chegamos a uma perda anual entre R$ 400 milhões e R$ 500 milhões." Ao calcular a projeção de retorno do investimento em linhas e estações de metrô, lembra o economista, seria desejável que esse valor entrasse na conta.
Cálculos como esse revelam como a "era urbana", ao emergir, produz a necessidade de se desenvolverem ferramentas para medir da maneira mais completa possível o funcionamento das cidades. Como escreve Eduardo Moreno, "o que pode ser medido pode ser mudado". A partir dos estudos pontuais que medem a forma como as particularidades de uma cidade podem contribuir para a elevação da renda de seus moradores, ou, no sentido inverso, como as deficiências dessa cidade atravessam o caminho da prosperidade de seus cidadãos, Moreno adverte para a necessidade de captar a conexão entre os diversos componentes da economia urbana.
Segundo o urbanista Vinícius Netto, da Universidade Federal Fluminense, esse gênero de medição ainda é um grande desafio. "Estudos empíricos e quantitativos como esses são raros no Brasil, embora nossas cidades sofram prejuízos diariamente por causa das deficiências estruturais das cidades", diz Netto. "Como ninguém computa o problema, passamos décadas sem enfrentá-lo." Sem conhecer ao certo os componentes da economia urbana, as políticas públicas calculadas para incentivá-la e combater os gargalos das cidades ficam tímidas e pontuais. Comparadas às iniciativas chinesas - a China considera a urbanização como estratégica em seu processo de crescimento geopolítico -, os programas de infraestrutura brasileiros, como o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) são modestos.

A proposta expressa no relatório da ONU é a iniciativa mais recente de fornecer uma medida ampla e completa para o mecanismo das cidades, que possa ser empregada em conjunto com os governos locais para implantar políticas públicas. O relatório introduz um "Índice de Prosperidade da Cidade", no esforço de representar a interação entre cinco fatores que sustentam a realidade urbana: a infraestrutura, a produtividade econômica, a qualidade de vida, a inclusão social e a sustentabilidade ambiental. Colocados lado a lado, os fatores compõem a "roda da prosperidade".
Sem surpresa, Viena (Áustria), Helsinque (Finlândia) e Oslo (Noruega) se destacam no índice geral da ONU, respectivamente com as notas 0,925, 0,924 e 0,924 (de um máximo de 1). São cidades dotadas de "fatores de prosperidade muito sólidos". As cidades com notas acima de 0,9 "são bem governadas e asseguram ambientes seguros e confiáveis", a expectativa de vida da população é alta, assim como os índices de educação, "a infraestrutura é disponível e o ambiente é bem administrado".
São Paulo, única cidade brasileira da lista, exibe um índice de 0,757; trata-se de uma cidade na "primeira categoria de fatores sólidos de prosperidade", em situação logo abaixo de Moscou (Rússia), com 0,793, e Ancara (Turquia), com 0,780, mas logo acima da Cidade do México (0,709). São cidades "com instituições sólidas, em que cada eixo da prosperidade reforça os demais, oferecendo impulso no caminho da prosperidade". São Paulo, México e Moscou, porém, sofrem com o problema da desigualdade, que reforça a sensação de insegurança e bloqueia o intercâmbio cultural no interior da cidade.
O índice é fruto da percepção de que o modelo de urbanização das últimas décadas não favorece a qualidade de vida e a produtividade dos cidadãos. Os principais exemplos negativos são a baixa densidade dos bairros construídos na segunda metade do século XX e a segregação dos usos do solo, que afastam as populações de seus locais de trabalho e dificultam a identidade das pessoas com os ambientes em que vivem. No afã de produzir uma prosperidade entendida simplesmente como incremento do PIB, as sociedades modernas deixaram de promover os fatores que tornam a vida urbana realmente próspera, avalia Eduardo Moreno. E isso, justamente no momento em que as cidades se tornam mais cruciais para a economia mundial.
"Conversando com populações de muitas cidades ao redor do planeta, notamos uma coisa muito curiosa: o que os habitantes dos centros urbanos consideram importante para seu bem-estar pessoal e econômico é muito parecido, seja na América Latina, na África ou na Ásia", afirma Moreno. Uma renda segura, a garantia de conseguir trabalhar e a pouca exposição a variações de preço compõem o eixo da "produtividade" no índice. Segurança, espaços verdes e recreativos, saúde, educação e transporte constituem o eixo da "qualidade de vida".
"Constatamos, também, que os habitantes das cidades nunca deixam de mencionar suas necessidades de comunicação, conexão, saneamento e mobilidade", relata Moreno. Esses critérios foram unidos no eixo da infraestrutura urbana. O quarto eixo, a "sustentabilidade ambiental", retoma por outra perspectiva alguns dos itens presentes nos demais: ar e água limpos, espaços públicos agradáveis, a forma como as atividades daquela cidade afetam a mudança climática. "Por fim, o mais notável foi observar como os habitantes de todas essas cidades consideram que só existe desenvolvimento de verdade se os benefícios forem compartilhados pelo conjunto da população." Por isso, incluiu-se o quinto e último eixo, o da igualdade social.
Moreno chama atenção para a importância desse último eixo, que julga um tanto negligenciado pelo poder público em muitos países. Para demonstrar a importância da igualdade no ambiente urbano, a agência Habitat oferece uma versão de seu índice que desconsidera essa categoria. "É notável como a desigualdade é quase sempre o item que puxa o índice de uma cidade para baixo", diz o pesquisador. O caso paulistano é particularmente notável. Desconsiderando a desigualdade econômica, que marca 0,507 (Copenhague, na Dinamarca, tem 0,922), a nota, que está hoje em 0,757, chegaria a 0,836. Dentre as cidades com "fatores de prosperidade muito sólidos", é Nova York a que mais se ressente da alta desigualdade (0,502) no relatório da ONU: sua nota é reduzida de 0,934 para 0,825.
Os índices escolhidos pela ONU para avaliar o funcionamento das cidades permitem conhecer o estado daquilo que Vinícius Netto chama de "funções urbanas", que incluem a infraestrutura de comunicação, saneamento, habitação e mobilidade, por exemplo, e que favorecem o aparecimento de interações, trocas e demais formas de contato, ou seja, a "química urbana". Netto cita o urbanista Richard Florida para ilustrar como essa "química urbana" é capital para o momento de inflexão na história da economia urbana. Diz Florida que "profissionais instruídos e trabalhadores criativos que vivem juntos em ecossistemas densos, interagindo diretamente, geram ideias e as transformam em produtos e serviços com mais agilidade que pessoas talentosas em outro tipo de cidade".
A complexidade da tarefa inclui aspectos que, à primeira vista, não parecem econômicos. Estudos feitos pela equipe de Netto demonstram, por exemplo, que as diferenças de morfologia arquitetônica dos bairros influenciam a presença de pedestres nas ruas, que, por sua vez, influenciam a implantação de pontos de comércio. Com isso, quarteirões em que os prédios dão para a rua e os pavimentos térreos são ocupados por lojas têm uma vitalidade econômica maior do que áreas dominadas por condomínios e comércio encerrado em shopping centers.
Outra pesquisa, realizada pela mesma equipe em Florianópolis e Porto Alegre, demonstra que a criminalidade - uma das maiores preocupações das populações urbanas brasileiras - é favorecida pelos muros altos que deveriam mantê-la longe. "O criminoso não quer testemunhas e as janelas próximas das calçadas são a testemunha mais eficiente", explica Netto. "É uma ironia: a pessoa que se sente mais segura atrás de um muro não imagina que no semáforo da esquina está correndo o maior perigo justamente por causa do muro."
Índices amplos, como o de prosperidade proposto pela ONU, são baseados em medições mais pontuais, que tentam simular pequenas variações no interior de uma cidade. Eduardo Haddad compara as ferramentas disponíveis para os pesquisadores a "um Sim City" científico, em referência a um jogo de computador em que o usuário desenvolve uma cidade virtual e deve lidar com questões como transporte, criminalidade e crescimento.
Simulações como essa incluem imaginar como seria São Paulo se o metrô desaparecesse da noite para o dia. A engenheira química Simone El Khouri Miraglia, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), buscou calcular o custo da retirada do metrô em São Paulo a partir de seus impactos sobre a saúde: quando os trens não circulam, mais automóveis atravancam as ruas, a poluição aumenta e as doenças respiratórias se multiplicam. Para calcular a dimensão do fenômeno, Simone comparou as entradas em hospitais paulistanos por doenças respiratórias nos dias de greve de metrô em São Paulo com os dias imediatamente anteriores e posteriores. O resultado foi expressivo: se o metrô deixasse de circular, a concentração de poluentes na atmosfera da cidade cresceria 75% em um ano, gerando um aumento de até 14% nas mortes por problemas respiratórios.
"Calculei quanto essas pessoas teriam produzido se continuassem vivas, para chegar à medição do impacto econômico dessa poluição, e o resultado ficou próximo de R$ 18 bilhões por ano", diz Simone. "Meu cálculo pode parecer exagerado, mas é bem conservador, porque muitos dos malefícios da poluição só se tornam visíveis no longo prazo."
As pesquisas da engenheira incluem outras simulações semelhantes: o custo das faltas ao trabalho por causa de doenças ligadas à poluição (cerca de R$ 13 milhões por ano) e, mais recentemente, a perda de produtividade dos trabalhadores de Diadema (SP) que vivem em moradias precárias. "Sem isolamento térmico, essas casas são frias e úmidas. Seus moradores adoecem mais, morrem mais e faltam mais ao trabalho. "Se a moradia prejudica a saúde de alguém, é difícil competir com quem vive em condições melhores."
Cada elemento da vida urbana que afeta a capacidade de competir das pessoas também se reflete na competitividade das cidades e, portanto, na produtividade da economia como um todo. Conjugar um sem-número de variáveis como essas é o desafio de indicadores como o índice de prosperidade proposto pela ONU.

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